A APANHA DO MEDRONHO

 

Chuvas caídas no final de Setembro, início de Outubro são um prenúncio de boa safra para os destiladores de aguardente de medronho: ajudam a amadurecer o fruto. Mas quer caia ou não do céu a bendita água, a época da apanha começa sempre no Outono, quando os ramos dos medronheiros se enchem de cachos vermelho-alaranjados.

Os trabalhos arrancam bem cedo e normalmente são feitos em grupo. Familiares, amigos e vizinhos juntam-se para apanhar o medronho em terrenos próprios, arrendados ou emprestados, localizados no concelho ou nas vizinhanças. Os percursos são feitos sobre rodas até onde os terrenos o permitem; depois são calcorreados a pé. Quem for dono ou conhecedor de medronhais soalheiros está em vantagem. À partida é aí que está o fruto mais doce.

Chegados ao destino, os homens embrenham-se mato adentro à cata dos melhores arbustos. As bagas apanham-nas uma a uma, sem pés nem folhas, até encherem o balde ou saco que transportam ao pescoço ou à cintura, despejando-o de quando em vez numa barrica comum. No mesmo arbusto pode haver em simultâneo flores e frutos em diferentes estágios de maturação. Aos destiladores só interessam as bagas cor-de-fogo, as únicas que atingiram o grau de amadurecimento desejado. Uma das regras de ouro nesta fase é colher somente a fruta madura. Não só renderá mais bebida, como esta será mais macia.

Uma vez limpa a zona, dá-se por terminado a jorna. O grupo poderá regressar ao mesmo local duas ou três semanas mais tarde, para apanhar os medronhos que quedaram nos arbustos por estarem ainda verdes. Se tudo correr bem, ou seja, se não forem traídos por geadas prematuras, os destiladores entregam-se a este labor até ao mês de Dezembro, altura de concentrarem toda a atenção numa outra fase do processo, a da fermentação.

 

A FERMENTAÇÃO

 

Se na apanha do medronho a intervenção humana se resume quase só à escolha do fruto, na fermentação é exigido ao destilador ciência e rigor nos procedimentos. Nesta fase, a mãe-natureza intervém apenas em questões como a temperatura e a humidade ambientais. Tudo o resto está nas mãos e nos sentidos dos homens.

O processo bioquímico de transformação dos açúcares em álcool inicia-se ainda na etapa da apanha, com a transposição do medronho que vai sendo apanhado para grandes potes ou tanques. Deita-se uma parte num dia, no dia seguinte, já com o volume mais baixo, acrescenta-se mais fruto, e assim sucessivamente até o recipiente estar cheio. No entanto, para que as ebulições químicas decorram na perfeição, não basta ir despejando baldes uns atrás dos outros. É imprescindível manter a massa de medronho húmida, caso contrário, azedaria toda a matéria e a bebida seria um fiasco.

Essa desejável humidade obtém-se borrifando diariamente os medronhos, não havendo uma medida certa para a água adicionada. É a observação e a experiência do destilador que determinam esse gesto. Uma vez cheia a barrica, e encontrado o equilíbrio entre material sólido (a massa, constituída pela polpa) e material líquido (o mosto, composto pelo sumo da fruta e pela água), o medronho começa a borbulhar – nas palavras dos destiladores, a ferver. Significa que está em plena fermentação, e assim se manterá por um período de 45 a 60 dias, findo o qual se procede à feitura da tampa.

Há várias formas de fechar as barricas; pode ser com um tampo de madeira ou com um plástico. O importante é que antes de posta a cobertura se faça o alisamento da massa com a mão, deixando à superfície uma fina camada de mosto, e que o saco ou tampo fiquem bem assentes no material fermentado. Há quem coloque pesos a calcar a tampa, impedindo assim a entrada de ar e o consequente azedamento da primeira camada de fruto levedado. Se tal acontecer, o destilador terá de retirar essa parte da massa antes de passar à destilação do medronho e à sua transformação em aguardente.

 

A DESTILAÇÃO

 

A terceira fase do fabrico de aguardente de medronho, o momento mais solene de todo o processo, inaugura-se com a desselagem da caldeira. No final de cada época de laboração, as autoridades oficiais colocam um selo de aço nas caldeiras, que só pode ser retirado na temporada seguinte. Uma vez cumprido esse gesto inaugural, inicia-se então o ritual das lavagens. A limpeza da caldeira e da respectiva cabeça é condição essencial para se obter um bom produto final. Como o alambique é de cobre, facilmente cria o que os destiladores chamam zinabre, que além de nocivo para a saúde dá mau gosto à bebida.

Já com tudo a postos, o destilador pode encher a caldeira com a massa de medronho fermentado. Uma caldeira de 120 litros leva umas sete arrobas de massa, pouco mais de cem quilos, além de um ou dois cáceres de água e alguns litros de aguardente frouxa, uma aguardente de baixa graduação obtida na última fase da destiladura anterior. Depois de cheia a panela, entra finalmente em cena um elemento essencial na separação entre álcool e fruto fermentado: o fogo.

Com o calor do lume, e após a colocação do chapéu ou cabeça no alambique, a massa de medronho posta na caldeira começa a libertar vapores, sendo estes impelidos a entrar num tubo que está mergulhado no pilão, um tanque cheio de água fria. Em contacto com a frieza da água, os vapores liquefazem-se, e do outro lado do pilão escorrem para dentro de uma vasilha as primeiras gotas de aguardente. Conhecida como “cabeçada”, esta primeira pinga não é ainda a desejada. O líquido que realmente se aproveita corre uns minutos depois, quando a bebida começa a fiar, quer dizer, a correr em fio certo. Aí sim, dá-se por iniciada a “estila” da “boa”.

 

ENGARRAFAMENTO E COMERCIALIZAÇÃO

 

Dos três tipos de aguardente extraídos ao longo de uma destilação ou caldeirada, – a “da cabeçada”, a “boa” e a “frouxa –, apenas um tem qualidade para ser comercializado. A chamada aguardente da cabeçada é a primeira a sair do alambique, depois de colocada a cabeça na caldeira. Corre durante uns minutos, que variam consoante a qualidade do fruto fermentado. Este primeiro material destilado é deitado fora ou misturado com a última aguardente retirada da caldeira, mas não tem qualquer valor comercial.

A verdadeira aguardente de medronho, a chamada aguardente boa, é a que corre a seguir à da cabeçada. Os destiladores distinguem-na pela sua cadência ao sair do tubo do alambique. Quando em vez de gotejar, o medronho destilado corre em fio e num ritmo certo, é porque está na altura de mudar a vasilha para a aguardente boa. A partir daqui, e durante umas duas horas, todas as atenções se viram para o controlo do fogo, pois é no seu domínio que está o segredo de uma boa “estila”. Passado esse tempo, e depois de apurada a graduação do produto, a vasilha volta a ser mudada, desta vez para receber a aguardente frouxa, uma aguardente de pouco teor alcoólico, usada para dar força à caldeirada seguinte.

Após ser extraído todo o álcool ao medronho fermentado, e separado o bebível do não- bebível, o produto final é enviado para a Universidade do Algarve, que o analisa e avalia. Só com este exame feito, os produtores podem começar a engarrafar, rotular e comercializar a sua aguardente de medronho.

 
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